O Plano Ferroviário Nacional 

Esta segunda feira começou o processo de elaboração daquele que será o primeiro Plano Ferroviário Nacional, um momento certamente importante e que marca o início daquele que será um ano de debate intenso sobre a ferrovia que o país quer e precisa. Decidi, por isso, dedicar um artigo para falar sobre o que podemos esperar deste plano. 

Antes de mais nada, é de saudar que finalmente haja vontade política de se avançar não só com grande investimento na ferrovia mas fazê-lo de forma estruturada e com planeamento de longo prazo. É preciso que haja coerência nas políticas seguidas e nos investimentos realizados e que o país não fique simplesmente a saltar de ciclo político em ciclo político com uma folha branca para onde se vão mandando umas ideias do que se pensa ser mais prioritário à medida que há financiamento. É importante criar um plano consensual, que se torne lei, e reja a evolução da nossa rede ferroviária nacional.

O investimento na ferrovia não é importante apenas pelo atraso em si da nossa rede ou por meros fatores ambientais. É crucial também para assegurar coesão territorial e reduzir a ultra dependência do país por importações massivas de combustíveis fósseis que desequilibram a balança comercial portuguesa.

Dito isto, vamos então falar sobre o que podemos esperar deste plano. Vamos por pontos:

1) O problema do interior desertificado e a articulação intermodal

Durante a apresentação, tanto o coordenador do PFN Frederico Francisco, como o Ministro Pedro Nuno Santos e os responsáveis da IP deixaram claro que este tem de ser um plano racional que procure criar uma rede verdadeiramente competitiva, não será um plano que simplesmente prevê reabrir linhas encerradas que só foram competitivas no século XIX em que a concorrência era o cavalo. Também foi deixado bem claro que o comboio não é "pau para toda a obra" e que neste próximo ano de debate não podemos deixar a discussão resvalar para uma confusão em que cada cidade ou município se preocupa meramente com o seu "quintal" tentando puxar investimento por mais ou menos racional que seja. 


Portugal é um país completamente encostado ao litoral (Fonte: INE)

Há que enfrentar a realidade, o interior de Portugal está extremamente desertificado e muitas pequenas cidades e vilas por e simplesmente, não têm dimensão para justificar um serviço ferroviário. Nesse aspeto, foi importante falar da possibilidade de o comboio e o autocarro deixarem de viver de costas voltadas e cooperarem de forma a que a ferrovia possa fazer o transporte de massas entre os maiores centros urbanos, deixando depois a rodovia fazer a "last mile" distribuindo passageiros por localidades mais pequenas. Esta questão às vezes é tão simples como uma mera coordenação entre os horários dos autocarros e dos comboios ou a integração dos 2 serviços num só bilhete. 


Exemplo dado durante a apresentação para a articulação comboio-autocarro

2) A Alta Velocidade não é, nem pode ser um tabu

Também ficou claro que Portugal não pode ter medo de investir em alta velocidade ferroviária e que nalguns casos ela será fundamental para resolver os problemas da rede convencional, nomeadamente o eixo Lisboa-Porto. Notou-se ainda que há o sentimento generalizado que o país se perdeu em entusiasmos e ideias mais faraónicas nos anos 2000 e que a AV portuguesa tem de ser pensada de forma mais racional, como um elemento estruturante da rede convencional e não como uma rede de ilhas ferroviárias para servir eixos de grande procura. 


Redução dos tempos de viagem a partir de Lisboa com a nova LAV Lisboa-Porto

O eixo Lisboa-Porto-Braga-Vigo é praticamente uma certeza, ainda há algumas questões em relação aos eixos perpendiculares, nomeadamente um mais a norte, e um eixo a Sul de Lisboa à fronteira de Elvas-Caia (está em construção a linha Évora-Elvas para AV e mercadorias mas o resto da linha até Lisboa é meramente convencional apesar das boas velocidades que permite). Diria que é provável que o plano preveja a construção integral de uma LAV neste eixo, não tanto pelas poupanças de tempos mas pelos conflitos gerados entre tráfegos muito rápidos e lentos na linha convencional. 

3) A Terceira Travessia do Tejo é um dado mais que adquirido

Ficou também claro que o país não terá complexos em construir mais uma travessia ferroviária do Tejo em Lisboa para encurtar os tempos de viagem para o Sul e Madrid em 30 minutos. Esta nova ponte, sempre foi polémica pelo seu elevado custo, mas o estado de saturação da Ponte 25 de Abril (e da linha de Cintura no geral) não deixam opção, é preciso mais uma travessia, até para garantir que o comboio consegue ser verdadeiramente competitivo com o automóvel nas viagens entre Lisboa e o Algarve.  


Terceira Travessia do Tejo projetada para a RAVE em 2008

A construção desta nova ponte, é também fundamental para assegurar serviços suburbanos de Lisboa para o Barreiro e restante linha do Sado bem como para possibilitar uma futura ligação ferroviária a um novo aeroporto de Lisboa na margem sul. Além disso, esta travessia já deverá permitir que comboios de mercadorias atravessem o Tejo em Lisboa, algo que hoje em dia é impossibilitado pelas severas limitações de carga da Ponte 25 de Abril.

4) A questão da linha Aveiro Mangualde

Foi também dado grande destaque à velha ideia de construir uma nova linha entre Aveiro e Mangualde. Esta linha deverá ser fundamental, não só para integrar Viseu na rede ferroviária mas também para combater o isolamento da Beira Interior, reduzindo muito os tempos de deslocação entre a AMP e esta zona do país.


Redução dos tempos de viagem com a nova linha Aveiro-Mangualde

Além disso, esta linha facilitará o acesso de mercadorias vindas do Norte de Portugal à fronteira de Vilar Formoso, potenciará o Porto de Aveiro e, dependendo dos padrões de velocidade com que for construída, poderá ser também ponto de passagem de serviços rápidos Porto-Madrid. 

Há que referir, no entanto, que esta linha já foi chumbada duas vezes pela Comissão Europeia por falta de viabilidade económica mas o Governo acredita que desta vez conseguirá assegurar financiamento europeu.  

5) A bitola é uma falsa questão

Durante a cerimónia de apresentação, o Ministro Pedro Nuno Santos deixou bem clara a posição do Governo português no que toca à "polémica" da bitola europeia: não é uma questão.

Uma vez que o Governo espanhol não tem quaisquer planos que apontem para uma transição total da sua rede para bitola europeia e que todas as nossas ligações fronteiriças estão em bitola ibérica, o tema da bitola não é minimamente prioritário para Portugal. Nas novas linhas a construir, bem como à medida que se forem renovando as existentes, serão instaladas travessas polivalentes que asseguram uma transição rápida e simples de bitola ibérica para europeia se algum dia um futuro Governo o considerar necessário. Portugal não construirá, por agora, qualquer linha em bitola europeia. 


As travessas polivalentes têm fixações para bitola ibérica e europeia

Não é apenas o governo que o afirma, a própria Medway, a maior operadora privada de mercadorias em Portugal, confirma que a bitola não é uma questão para se colocar agora e que o transporte de mercadorias prefere que seja dada prioridade a outros entraves que a rede coloca atualmente como pendentes agressivas, sinalização datada, falta de canal horário e capacidade ou falta de estações que permitam cruzamentos de comboios com 750 metros. 

6) O caso bicudo de Trás-os-Montes

Já se sabia há algum tempo que um dos objetivos deste novo plano seria ligar todas as capitais de distrito à ferrovia. Tendo em conta que Viseu será sempre integrada numa nova linha Aveiro-Mangualde, resta-nos decidir como fazer chegar ferrovia a Vila Real e a Bragança. 

Como mencionámos anteriormente, este plano provavelmente não será muito favorável à ideia de reabrir antigas linhas de bitola métrica como as Linhas do Corgo e Tua que serviram as duas capitais de distrito de Trás-os-Montes. Estas linhas, além de terem um traçado extremamente sinuoso e ultrapassado, rebatem na Linha do Douro, que já de si é uma linha secundária com um traçado difícil e pouca capacidade disponível. Isto quer dizer que para levar ferrovia competitiva com a rodovia a estas duas cidades, teremos de apostar na construção de uma extremamente dispendiosa Nova Linha de Trás-os-Montes. 


Os desafios da nova ligação a Trás-os-Montes

Esta linha foi ainda apresentada sobre a forma de uma mera ideia, mas a ser construída ligaria o Porto a Vila Real e Bragança, entrando depois em Espanha na zona de Zamora. Não se enganem, esta linha seria extremamente cara de construir (por causa do relevo de ToM) para o retorno pequeno que teria. A ser construída, será extremamente difícil justificar o investimento, por exemplo, junto da comissão europeia para garantir financiamento, seria uma obra meramente a fundo perdido para fins de coesão. 

A ligação internacional pode ajudar a trazer algum racional ao investimento e seria ainda de estudar a ideia de construir a linha apta a velocidades mais elevadas que permitissem por exemplo, a passagem de serviços de AV Porto-Madrid nela. Sem nenhuma destas valências, tenho sérias dúvidas que esta ideia algum dia avance. Estamos a falar das zonas mais desertificadas do país, 

7) Novas linha suburbanas e regionais

Este plano também deverá contemplar a construção de novas linhas mais pequenas, de cariz mais suburbano e regional, em zonas com elevada densidade populacional. O melhor exemplo será a nova Linha do Vale do Sousa que deverá ligar o Porto a Paços de Ferreira, Lousada e Felgueiras. 


Esquemática dos suburbanos da AMP com a nova linha do Vale do Sousa (fonte: Público)

Também incluído neste plano deverá estar o aproveitamento da Linha de Leixões para tráfego suburbano, criando mais um eixo de mobilidade na AMP que deverá cruzar várias vezes a rede de Metro da Invicta. O aproveitamento desta linha de acesso ao Porto de Leixões também deverá ser importante para assegurar a ligação ferroviária ao Aeroporto Francisco Sá Carneiro

Por enquanto, não é claro se o plano contemplará novas linhas suburbanas na AML. 

8) Ligações aos Aeroportos

A ligação da rede ferroviária nacional aos Aeroportos de Faro e Porto será também uma máxima prioridade para o Estado. Estes dois investimentos já estão previstos no PNI2030 mas este novo plano de longo prazo deverá contemplar a construção de uma nova secção de linha de AV entre Braga e o Aeroporto Sá Carneiro, fazendo parte do eixo Porto-Vigo de AV, tal como estava previsto pela RAVE. 

Quanto ao Aeroporto de Lisboa, ainda não é certo o que o plano dirá ao certo, mas devido à proximidade do Aeroporto à Gare do Oriente e o facto de estas duas infraestruturas estarem ligadas diretamente pela Linha Vermelha do Metro de Lisboa deverá dispensar a construção de um ramal ferroviário para chegar ao Aeroporto Humberto Delgado. No entanto, é provável que sejam encontradas novas soluções de bilhética que permitam, por exemplo, integrar o bilhete de Metro no de comboio, facilitando o transbordo e permitindo que a Linha Vermelha sirva quase de shuttle entre as duas infraestruturas. 


Na apresentação, a curta distância entre o Oriente e o Aeroporto de Lisboa foi comparada à distância entre os vários terminais de Heathrow

9) Nova entrada da Linha do Oeste em Lisboa

Apesar de não ter sido falada durante a apresentação do plano, é difícil ignorar um investimento que já é falado nos meios ferroviários há muitos anos, uma nova entrada da Linha do Oeste em Lisboa. Esta infraestrutura consiste numa variante à linha do Oeste a sul da Malveira, que permita dispensar o uso da sobrecarregada Linha de Sintra para chegar à região do Oeste.

Esta nova variante deverá passar por Loures mas não se sabe ao certo onde é que deverá entroncar na rede ferroviária de Lisboa. Há a hipótese de utilizar o Vale do Trancão, ou de escavar mesmo um túnel de grandes dimensões desde a zona de Frielas até à Linha de Cintura. A certa altura, espero dedicar um artigo só a este projeto. 

Em suma, o Plano Ferroviário Nacional terá de ser um documento capaz de reunir largos consensos políticos e sociais, que assegure as necessidades de expansão da capacidade ferroviária do país mantendo sempre um bom grau de pragmatismo e racionalidade de forma a evitar que se avance com investimentos erráticos e dispersos e que se cometam excessos como infelizmente o país começou a cometer com a rede rodoviária. Tem de ser um plano capaz de mudar o paradigma dos transportes em Portugal, capaz de puxar o grande público para a ferrovia, promovendo não só melhorias ao nível ambiental mas também económico. 

Tomás Ribeiro

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