A Ferrovia no Algarve: que futuro podemos ambicionar?  

O Algarve sempre foi uma região singular do nosso país. Não estou a falar das praias ou das paisagens espetaculares mas sim da sua situação peculiar no que toca à ferrovia. Porquê? Porque apesar do Algarve ser uma zona com uma população muito considerável (quase 440 000 pessoas) e de ser a terceira NUT III que mais contribui para o PIB nacional, a sua rede ferroviária sempre foi muito fraca. Vejamos.

A Linha do Algarve estende-se ao longo da costa algarvia desde Lagos até Vila Real de Santo António, na fronteira com Espanha, conectando praticamente todos os grandes centros urbanos desta região. No entanto, a maior parte da Linha nem está eletrificada (só existe catenária entre Tunes e Faro), não há serviços que façam todo o percurso desde Barlavento a Sotavento e os poucos que há muitas vezes têm uma procura miserável. 


Mapa da Linha do Algarve

Tendo tudo isto em conta, levantam-se algumas questões: Porque é que o serviço na Linha do Algarve é tão fraco? Como é que se pode reverter a situação e tornar o comboio um meio de transporte estruturante nesta região? Que futuro podemos ambicionar para esta Linha claramente subaproveitada? Neste artigo vou tentar responder a estas questões. 

O estado a que chegou a Linha do Algarve não encerra em si grandes segredos: falta de investimentos, falta de interesse do poder político tanto local como central, transferência enorme de utilizadores para a rodovia durante as últimas décadas do século passado, etc... Mas adiante, a Linha do Algarve neste momento pode ser dividida em 3 troços: Lagos-Tunes, Tunes-Faro, Faro-VRSA. 

O troço Tunes-Faro é de longe o que está em melhores condições, uma vez que foi eletrificado e modernizado no início dos anos 2000 nos preparativos para o Euro 2004 (em que parte dos jogos se realizaram no polémico Estádio do Algarve). Foi nesses anos que foram feitas grandes melhorias à rede ferroviária a sul do Tejo: eletrificou-se toda a Linha do Sul e corrigiram-se traçados até Torre Vã permitindo aos serviços IC e Alfa Pendular circular boa parte do percurso em patamares de 200/220 km/h até Faro. 



Mais tarde, seria inaugurada a Variante de Alcácer que reduziu a viagem Lisboa-Algarve em 10 min.

Os troços Lagos-Tunes e Faro-VRSA, no entanto, estão num estado muito mais degradado. Não estão eletrificados, o traçado só permite 80 a 120 km/h de velocidade máxima e os únicos serviços existentes são regionais feitos com automotoras diesel da série 450, antigas, pouco fiáveis e há muito a pedir uma remodelação profunda ou mesmo a reforma. Os serviços são pouco frequentes e lentos, de Lagos a Faro a viagem pode durar quase 2 horas por vezes. Para chegar a VRSA há um transbordo na capital de distrito e mais 1 hora de viagem sensivelmente. 


Automotoras Diesel série 450 da CP na Linha do Algarve

Como é óbvio, este serviço não é minimamente competitivo com a rodovia e não reflete de todo a densidade populacional ou a importância económica da região. 

Mas então, como é que podemos dar a volta a esta situação? O que está a ser feito e que outros investimentos são necessários? 

Neste momento, estão em curso os concursos para a eletrificação dos 2 troços mais degradados da Linha do Algarve, ao abrigo do programa Ferrovia 2020, intervenções que devem estar concluídas até ao final de 2023. No entanto, este programa não contempla qualquer intervenção na superestrutura de via da linha, ou seja, os comboios vão continuar a ter de afrouxar (abrandar) até aos 30 para passarem nas estações e o traçado vai continuar o mesmo, ou seja, com velocidades máximas medíocres. 

Escusado será dizer que apesar desta eletrificação ser um passo positivo e importante, especialmente a nível ambiental, é uma intervenção muito pouco ambiciosa e que por si só não conseguirá alterar muito o panorama geral da ferrovia no Algarve. São precisos mais investimentos, alguns deles pequenas intervenções, outras mais ambiciosas. 

Mas, é impossível planear investimentos na infraestrutura sem sabermos primeiro que tipos de serviços queremos lá por a andar, por isso há que rever os serviços que queremos numa linha do Algarve moderna.

A nível de longo curso, os serviços Alfa Pendular não devem sofrer grandes alterações, não se justifica serem prolongados além de Faro. No entanto, os serviços IC são uma questão importante, e já vamos perceber porquê. Os planos da CP são de prolongar o atual IC que serve Faro até VRSA e criar um novo serviço para Barlavento, até Lagos, muito provavelmente com paragens em Portimão e Silves. 


Alfa Pendular parado na estação de Faro

Ao nível dos serviços regionais, é bastante claro que o modelo atualmente praticado pela CP não funciona. Seja pelos tempos de viagem agoniantes, seja pela falta de frequências ou mesmo pelo facto de os comboios muitas vezes pararem em apeadeiros onde não sai nem entra ninguém. É preciso aumentar as frequências e criar serviços inter-regionais que atuem quase como comboios suburbanos rápidos e não parem em todas as estações e apeadeiros. Aliás, e sei que isto não é muito popular de se dizer, o próprio propósito de existência de alguns apeadeiros deveria ser repensado, tal é a sua procura residual. 

Ou então, adotar um sistema de "stop on request" em que os comboios só param numa determinada estação ou apeadeiro se houver passageiros para sair ou embarcar, como já acontece bastante no Reino Unido ou um pouco como fazem os autocarros. Desta forma, elimina-se a necessidade de parar obrigatoriamente em todas as estações com o revisor a descer para a plataforma para verificar se há alguém para embarcar e mandar o maquinista seguir viagem (façam a experiência de andar num regional no Algarve, há paragens onde o revisor nem desce do comboio, só abre a porta mete a cabeça de fora para dar uma olhadela e dá sinal de partida). Isto é extremamente ineficiente e aliás só provoca desgaste desnecessário ao material circulante. 

Dito isto, vamos então passar à nossa lista de prioridades no campo da infraestrutura:

1- Resolver a questão das agulhas

Um dos problemas mais absurdos que afetam a Linha do Algarve tem a ver com as agulhas das entradas das estações nos troços Lagos-Tunes e Faro-VRSA que limitam a velocidade praticada a uns patéticos 30 km/h. Hoje em dia, esse problema não se mostra preocupante porque todos os serviços regionais param em todas as estações e apeadeiros, mas no futuro, quando quisermos ter serviços inter-regionais ou urbanos e de longo curso (que vão passar nalgumas estações sem parar) é imperativo que as agulhas não obriguem constantemente a afrouxamentos (reduções de velocidade) à entrada e saída das estações. 


Estação de Lagos, término da Linha do Algarve a ocidente

2- Concordância de Tunes

Atualmente não existe uma concordância em Tunes, o que significa que comboios provenientes da Linha do Sul que queiram seguir para o troço da linha que vai até Lagos são obrigados a inverter o sentido de marcha. Tendo em conta que se pretende ligar o Barlavento Algarvio a Lisboa com serviços IC, é imperativo que se avance com esta pequena ligação, que aliás, existiu até aos anos 90. Inverter o sentido de marcha de um IC é uma operação relativamente demorada especialmente porque é preciso desacoplar a locomotiva para a trocar de ponta da composição, aliás, atualmente nenhum IC tem no seu percurso, uma inversão destas.

Também seria positivo criar esta ligação para que no caso de se desenvolverem serviços de mercadorias para o Barlavento, não haver a tal necessidade de inversão da locomotiva. Ainda por cima, trata-se de uma intervenção relativamente barata.


Concordância de Tunes

3- Correção de Traçados na Linha do Sul

Apesar de não se tratar da Linha do Algarve, a verdade é que uma das principais limitações à ferrovia nesta região é a sua ligação a Lisboa nomeadamente através da Linha do Sul. Tal como expliquei anteriormente, esta linha foi alvo de extensas intervenções para o Euro 2004 mas a correção de traçados ficou-se por Torre Vã, deixando o resto da linha até Tunes com o traçado primitivo que tinha. O resultado foi que na zona da serra algarvia as velocidades praticadas são irrisórias para um corredor maioritariamente apto a altas prestações, os comboios de longo curso arrastam-se a 90 km/h.


O traçado da Linha do Sul na zona da Serra algarvia é extremamente sinuoso

É urgente resolver este problema e acelerar a ligação Lisboa-Algarve corrigindo o traçado da Linha do Sul entre Torre Vã e Tunes, obra aliás prevista no PNI 2030. Sabemos que a IP estudou essa melhoria do traçado, tendo chegado à conclusão de que com 250 milhões de euros de investimento, seria possível abater meia hora ao percurso Oriente Faro. Teriam de ser ripadas curvas e construídas variantes, uma delas com um túnel de 2km, isto permitiria abandonar o troço mais que obsoleto da Linha do Sul na zona da serra, com os Alfa Pendular a passarem para patamares de 200 km/h. 

4- Ligação ao Aeroporto de Faro

A ligação ferroviária ao Aeroporto de Faro seria um investimento importante de realizar por duas razões: o Aeroporto atualmente é dos maiores geradores de tráfego da região mas está muito mal servido de transportes públicos e daria uma alternativa ao transporte rodoviário que seria interessante não só para os locais como também para os milhões de turistas estrangeiros que procuram o Algarve todos os anos. Pode-se ainda mencionar que uma ligação ferroviária eliminaria a necessidade de usar camiões para fazer chegar combustível ao Aeroporto (atualmente o combustível já vai de comboio até Loulé, onde tem de ser feito o transbordo para o camião). 

Existem duas formas de efetuar esta ligação. A primeira (já estudada pela IP) consiste na construção de um pequeno ramal de via única entre a zona do Fórum Algarve e o Aeroporto, com uma bifurcação na linha principal para permitir aos comboios seguir para Barlavento ou Sotavento. Uma segunda, seria fazer uma variante à Linha do Algarve entre a zona da Universidade (Campus de Gambelas) e o Fórum Algarve. Trata-se de certa forma de um prolongamento da primeira solução, mas evitaria que a estação do Aeroporto se tornasse um terminal para os comboios, permitindo a todos os serviços regionais/urbanos vindos de Barlavento, pararem no Aeroporto seguindo depois para Faro. Além disso, permitiria criar um apeadeiro na zona da Universidade. Os serviços de longo curso continuariam a usar a o traçado atual por não haver grande necessidade de estes servirem o Aeroporto de Faro. 


Variante à Linha do Algarve a passar no Aeroporto de Faro

5- Duplicação Tunes-Faro

Se tudo corresse como planeado, e a Linha do Algarve se começasse a afirmar como eixo de elevada procura na região (especialmente com os serviços urbanos), é possível que o troço central da Linha entre Tunes e Faro tenha de ser duplicado, mas tal seria sempre decidido consoante a evolução do tráfego. A via única existente não oferece uma capacidade espetacular e com serviços mais frequentes, é provável que comece a atingir a saturação. 

No entanto, tratar-se-ia de uma intervenção relativamente pouco dispendiosa uma vez que o relevo nesta zona é relativamente brando e em grande parte da linha, o canal disponível tem espaço para acolher uma segunda via. 

6- Correção de traçados na Linha do Algarve

Com uma procura mais consolidada, poderia ser também avançar a necessária campanha de correção de traçados nos troços Lagos-Tunes e Faro-VRSA. Tendo em conta o terreno favorável da região algarvia e à necessidade de ter serviços suburbanos e de longo curso, não será disparatado falar de fazer upgrades a estes 2 troços para permitirem velocidades na casa dos 160 km/h, mesmo que por vezes seja necessário substituir obras de arte, nomeadamente pontes. 

Sim, a linha poderia ser melhorada para 200 km/h mas tendo em conta o tipo de tráfego que ali existe e poderia existir bem como a relativa curta distância entre cidades servidas por IC, não valerá muito a pena aceitar o custo extra. 

Quanto ao troço Tunes-Faro, este já permite velocidades na casa dos 140 km/h. O seu traçado poderia ser facilmente melhorado sim, mas a clara prioridade está nos outros 2 troços mais obsoletos. 

7- Ligação internacional a Ayamonte e Huelva 

A ligação ferroviária internacional VRSA-Ayamonte é um tema recorrente quando se fala de ferrovia algarvia. Acima de tudo, é importante perceber que esta ligação, apesar de interessante, não é propriamente uma prioridade. Os nossos esforços devem estar focados mais em melhorar a linha do nosso lado e não tanto começar a sonhar com ligações internacionais (essa inversão de prioridades infelizmente sempre foi um problema na ferrovia portuguesa no geral). 

A ser realizada, os custos para Portugal desta ligação seriam relativamente reduzidos, teríamos basicamente de pagar metade da ponte sobre o Guadiana, os espanhóis já teriam de investir mais porque retiraram os carris que chegavam a Ayamonte (hoje a rede já só chega a Huelva, que deverá receber serviços de alta velocidade). 

Uma ligação Faro-Huelva seria interessante, primeiro porque há uma relação relativamente intensa entre o Algarve e a zona sul da Andaluzia. Segundo, porque desta forma o Aeroporto de Faro estaria em boas condições de concorrer com o Aeroporto de Sevilha para aeroporto principal da região. 


Ponte Internacional do Guadiana

Estes são os investimentos necessários para termos uma ferrovia competitiva no Algarve, são investimentos pragmáticos e estruturados e é importante que se tenham as prioridades bem definidas. 

Mas o caro leitor deve estar a pensar "então e nada sobre a Alta Velocidade?". Sim, nos tempos idos da RAVE chegou de facto a estar planeada uma linha de AV a chegar ao Algarve a partir da linha de AV Lisboa-Madrid, ali na zona de Évora. Tal linha nunca foi vista como minimamente prioritária nem nunca chegou a haver qualquer projeto, nunca passou mesmo de uma linha num mapa. 


Mapa da RAVE para os eixos de AV em Portugal

A realidade é que com o troço final da Linha do Sul modernizado, esta linha torna-se um corredor de altas prestações, mais que adequado para servir o Algarve por um custo muitíssimo inferior a uma faraónica linha de AV a cruzar a zona mais desertificada do país e a correr em paralelo a uma linha que permite velocidades de 200/220 km/h. 

Espero que tenham achado esta reflexão sobre a ferrovia algarvia interessante. Rentabilizar e aproveitar melhor a Linha do Algarve é imperativo para o desenvolvimento da ferrovia nacional e da região, bem como para o combate às alterações climáticas que nos assombram. É necessária uma abordagem pragmática e bem fundamentada mas que não se iniba de pedir investimentos consideráveis naquela que é das linhas mais subaproveitadas do país. 

Tomás Ribeiro

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