A Estação Central de Lisboa: o debate esquecido

Hoje, vou mesmo ao fundo do baú resgatar um debate que hoje em dia nos parece inexistente mas que há cerca de 10 anos estava na ordem do dia. Um debate alimentado pela implementação da Alta Velocidade em Portugal e que dividia a opinião de engenheiros e decisores políticos: a chamada, Estação Central de Lisboa. Mas primeiro, vamos recuar ainda mais no tempo. 

A primeira grande estação a servir Lisboa foi Santa Apolónia (SA), inaugurada em 1865 no antigo Cais dos Soldados. Esta estação não foi, digamos, um enorme sucesso nos seus primeiros anos de operação por não estar muito próxima do centro da cidade (lembremo-nos que Lisboa era na altura uma cidade muito mais pequena do que é hoje). Mais tarde, em 1890, seria inaugurada uma estação muito mais central no coração da cidade, a Estação do Rossio. Esta estação passaria a concentrar serviços de longo curso para cidades como o Porto, tornando-se então a principal estação da capital. 


Estação do Rossio no centro de Lisboa

No entanto, em 1955, o Túnel do Rossio (que liga a estação a Campolide e ao resto da rede ferroviária nacional) teve de ser encerrado para se proceder às obras de eletrificação do troço. Deste modo, os serviços de longo curso voltaram a ser desviados para SA onde ficaram concentrados desde então. A partir deste ponto, a estação do Rossio passaria a servir apenas comboios suburbanos. 


A estação de Santa Apolónia inicialmente tinha apenas 2 pisos, o 3º foi adicionado em 1908

Com o passar das décadas, o paradigma ferroviário em Lisboa mudou consideravelmente. Ao longo da segunda metade do século XX, a Área Metropolitana de Lisboa assistiu a uma gigantesca explosão urbana, tanto no concelho de Lisboa como nos seus subúrbios. Zonas como a Amadora, Queluz ou o Cacém, graças à sua proximidade com a Linha de Sintra, passaram de pequenas vilas a grandes centros urbanos onde se concentraram centenas de milhares de pessoas. O mesmo aconteceu ao longo do troço inicial da Linha do Norte em zonas como Sacavém, Bobadela e Alverca e ao longo da Linha de Cascais em Algés, Oeiras ou Carcavelos. Com a concentração de muitas empresas na zona de Sete Rios e Avenidas Novas, a Linha de Cintura passou a afirmar-se como o grande tronco comum dos serviços suburbanos da AML. 

Mas foram os anos finais do século passado que marcaram uma viragem decisiva na ferrovia em Lisboa: com a inauguração do Eixo Ferroviário Norte Sul explorado pela Fertagus através da Ponte 25 de Abril, a quadruplicação e modernização da Linha de Cintura e a inauguração da Gare do Oriente inserida no mega projeto da Expo 98. Com abertura desta nova Gare intermodal muito mais moderna que as restantes estações de Lisboa à época e pensada de raiz para ser um grande interface, SA viria a perder grande parte da sua importância tornando-se cada vez mais uma estação secundária na capital. Excluída de quase todos os suburbanos da AML e localizada numa zona algo "morta" da cidade com poucos serviços e comércio, em 2008, António Costa, na altura presidente da CML, chegaria mesmo a falar do seu encerramento. 


A Gare do Oriente ainda em construção

E é mesmo para 2008 que vamos saltar, porque é lá que está o motivo que impulsionou o debate em torno da necessidade de construir uma estação Central para servir Lisboa: a implementação de uma rede de Alta Velocidade em Portugal. Lisboa estava dividida entre vários interfaces não tendo uma grande estação central definida como algumas outras grandes cidades europeias. Tendo em conta que a chegada da AV viria gerar um aumento significativo do tráfego de passageiros na cidade, começou a ser sugerido que se avançasse com a construção de um grande polo ferroviário que concentrasse serviços suburbanos, regionais, longo curso e de AV. 

Foram propostas várias soluções, mas iremos resumir-nos às 4 mais importantes, que chamaremos Rego, Entrecampos, Chelas-Olaias e expansão da Gare do Oriente. 

A solução Rego é talvez a mais antiga e menos atual de todas estas. Consistia na construção de uma grande estação central na Linha de Cintura entre Sete Rios e Entrecampos junto ao bairro do Rego. Porque é que se trata de uma solução pouco atual? Porque grande parte dos terrenos que poderiam ser usados para a construção da estação e dos seus acessos já foram, ou estão em vias, de serem urbanizados. O espaço disponível atualmente é manifestamente pequeno para a implementação de uma infraestrutura desta dimensão e importância, e acima de tudo, o Rego não tem acesso à rede do Metro de Lisboa. Trata-se por isso, de uma solução completamente ultrapassada. 

Localização da hipotética estação central do Rego

A solução Entrecampos, pode parecer muito atrativa de facto. Entrecampos é atualmente o grande centro empresarial da cidade de Lisboa (é o meio de um eixo central que consiste nas Avenidas Fontes Pereira de Melo, da República e Campo Grande) e, ao contrário do Rego, Entrecampos dispõe de acesso ao Metro de Lisboa. 


Estação de Entrecampos atualmente

Mas quando analisamos esta alternativa com maior profundidade começamos a identificar uma série de fragilidades. Em primeiro lugar, Entrecampos também sofre da problemática da falta de espaço. Todo o espaço em torno da estação já está urbanizado ou em vias de o ser (veja-se os terrenos da Antiga Feira Popular de Lisboa). Seria extremamente complexo criar uma estação com mais de 4 ou 6 vias naquela localização o que é absolutamente insuficiente para uma estação central, já para não falar que nada da atual estação poderia ser aproveitado. Além disso, é de referir que o próprio Metro Lisboa por vezes já tem dificuldade em lidar com os enormes fluxos de passageiros desta zona da cidade, pelo que a construção de uma grande estação em Entrecampos faria o sistema entrar em rutura. 

O espaço em torno da estação de Entrecampos é muito escasso

Em segundo lugar, tanto Entrecampos como o Rego ou qualquer outra estação naquele eixo central da Linha Cintura sofrem de duas grandes condicionantes: a facilidade de saturação total da Linha de Cintura e uma condicionante imposta pela Terceira Travessia do Tejo (TTT). Vejamos:

A Linha de Cintura é uma linha de via quadrupla nesta zona mas que atualmente já é muito utilizada por serviços suburbanos (da Fertagus, Linha de Sintra e Linha da Azambuja) bem como o longo curso para o Sul do país. Com a construção da ligação entre a Linha de Cascais e a Cintura em Alcântara, esse tráfego deverá aumentar ainda mais. É, por isso, absolutamente inviável que os inúmeros serviços de longo curso da Linha do Norte sejam prolongados até Entrecampos. Por e simplesmente a Linha não tem capacidade para tanto tráfego.

Além disso, há que ter em conta que num futuro mais ou menos distante, é muito provável que se avance com a construção da TTT, provavelmente no corredor Chelas-Barreiro ou Beato-Montijo. A TTT servirá como principal travessia do Tejo para o longo curso ferroviário, aliviando assim a saturada Ponte 25 de Abril. Mas isto significa que os serviços de longo curso oriundos quer de Norte quer de Sul que não terminem em Lisboa não utilizarão a Linha de Cintura. Afinal de contas, de que serve ter uma estação central nova, se alguns serviços rápidos de longo curso nem lá podem parar? A solução para isto seria ter todos os comboios a terminar ou iniciar a viagem em Lisboa, mas essa medida centralizadora só iria prejudicar a competitividade do serviço, ignorando completamente que Lisboa, apesar de capital, é o meio ponto de uma fachada atlântica muito maior entre o Algarve e o Minho Litoral. 

Esquematização do problema imposto pela TTT

É crucial que uma grande estação central de Lisboa permita que serviços de longo curso efetuem paragem prosseguindo depois para Norte/Sul fazendo uso da TTT a implementar num dos corredores referidos. 

Estas grandes condicionantes acabam por condenar qualquer ideia de implementar uma estação central ao longo da Linha de Cintura. Mas afinal de contas, e Chelas-Olaias? Seria uma solução melhor? 

Resposta curta: não. Além de sofrer da grande condicionante imposta pela TTT, esta opção, apesar de ter algumas vantagens como a possibilidade de ligação à estação do Metro nas Olaias, também tinha vários problemas. 


A estação do ML das Olaias foi sobredimensionada já a pensar num interface com o comboio

A localização proposta no Vale de Chelas, apesar de proporcionar muito mais espaço que o Rego ou Entrecampos, apresenta um relevo difícil onde a construção de uma grande estação obrigaria a enormes movimentos de terras e obras geotécnicas de estabilização dos terrenos. As principais vias rodoviárias passam a uma cota mais elevada, ou seja os acessos também não seriam simples de construir. Além disso, o vale é atravessado por dois grandes viadutos: o do Metro Lisboa e o da Avenida Carlos Pinhão, cujos pilares e cota dos tabuleiros condicionam bastante as opções de volumetria da estação a construir.

O Vale de Chelas é atravessado por 2 grandes viadutos

E depois há a questão da própria localização. A zona de Chelas/Olaias é uma zona maioritariamente habitacional, sem grandes serviços ou comércio. Está relativamente afastada dos grandes polos de escritórios da cidade (Avenidas Novas e Parque das Nações) mesmo estando diretamente ligada a estes pela Linha Vermelha do Metro. Trata-se de uma zona relativamente "morta" da cidade de Lisboa.

Resta-nos por isso, uma solução: a expansão da Gare do Oriente. Não é uma solução perfeita, tendo como grande calcanhar de Aquiles a sua localização excêntrica em relação ao centro de Lisboa. Mas ainda assim é uma solução que apresenta inúmeras vantagens. Vejamos:

  • Ao contrário de Entrecampos, a Gare do Oriente já foi pensada de raiz como um grande interface entre o comboio, metropolitano e serviços rodoviários (aliás a estação dispõe de um grande terminal rodoviário);
  • Não sofre da condicionante TTT uma vez que qualquer serviço oriundo de Norte/Sul pode prosseguir viagem sem ter de efetuar uma inversão;
  • A maior parte da infraestrutura já está construída o que reduz bastante o investimento necessário e rentabiliza o já efetuado aquando da Expo 98;
  • A estação insere-se na zona mais moderna da cidade, num dos grandes centros culturais, de escritórios e comércio da capital;
  • Está ligada diretamente pela Linha Vermelha do Metro Lisboa à zona das Avenidas Novas e ao Aeroporto de Lisboa;
  • A estação já dispõe de 8 vias tendo espaço para acolher até 11;
  • Já existe uma zona perto da estação sinalizada pela CML para acolher um Parque de Manutenção e Oficinas, ou seja, livre de risco de ser urbanizada;
  • Com a prevista quadruplicação do troço Areeiro-Braço de Prata da Linha de Cintura, todos os serviços suburbanos que atualmente usam essa linha podem chegar à estação central (Oriente);
Obviamente que as condições de conforto para os passageiros da estação teriam de ser amplamente melhoradas mas ainda assim trata-se de um pequeno preço a pagar em comparação com os custos de construir uma enorme estação de raiz. 

Render da estação do Oriente já ampliada com proteções laterais contra o vento melhoradas

Podemos ainda realçar que para esta zona da cidade está também prevista a implementação do braço oriental do sistema de Metro Ligeiro LIOS que facilitará ainda mais o acesso à Gare do Oriente a partir de zonas como a baixa pombalina, o Beato, Portela ou Sacavém. Além disso, a proximidade da Gare do Oriente à maior sala de espetáculos (Altice Arena) e ao maior centro de congressos do país (FIL) tornam esta opção ainda mais atrativa.

Por estas razões, a expansão da Gare do Oriente apresenta-se como uma solução racional e pragmática para colmatar a falta de uma grande estação central na cidade de Lisboa. Não se tratando de uma solução perfeita, é ainda assim o melhor compromisso que podemos obter entre as várias condicionantes com que lidamos. 

Tomás Ribeiro

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