O Falso Problema da Bitola Europeia: perguntas e respostas

Com o entusiasmo que se tem vivido com o investimento na ferrovia, em Portugal voltou à esfera pública uma velha discussão: Portugal precisa de adotar a bitola europeia ou não? A resposta a esta questão não é propriamente simples ou direta, aliás a pergunta pode nem ser bem essa. 

Dito isto, talvez esteja na altura de fazermos mais um "perguntas e respostas" para arrumar de vez este assunto na prateleira onde devia estar há muito tempo. 

Porque é que Portugal e Espanha têm uma bitola diferente do resto da Europa?

Há várias razões. Apesar de ser comum ouvir a história de que seria uma salvaguarda para o caso de os franceses voltarem a invadir a península (não poderiam usar a ferrovia como meio de abastecimento), a razão mais amplamente aceite é de que no século XIX se acreditava que com uma bitola mais larga se podia construir locomotivas com caldeiras maiores, logo, com maior potência e capacidade de tração.


Diferença entre vários tipos de bitola

Note-se no entanto que a primeira linha inaugurada em Portugal até tinha bitola standard (europeia) mas como Espanha decidiu adotar a ibérica, de forma a evitar um total isolamento ferroviário, Portugal acabou por construir a sua rede em ibérica também. (Há mais uns detalhes nesta história toda mas não quero ficar aqui até amanhã a discutir diferenças de milímetros). 

Que impacto é que a bitola tem no nosso tráfego de mercadorias por comboio?

Muito pouco ou nenhum, em grande parte porque a esmagadora maioria do tráfego de mercadorias em Portugal é interno, ou tem como destino Espanha. Neste momento, a carga ferroviária que atravessa os Pirenéus tem de ser trocada de vagões na fronteira com França. Não se trata de uma operação particularmente demorada ou cara, até porque muita da carga segue em contentores, mas não deixa de ser um certo entrave. 


A Medway (ex CP Carga) é a maior operadora ferroviária de mercadorias em Portugal

Que tecnologias existem para contornar o problema da bitola?

No setor dos passageiros existem várias tecnologias sendo as mais notáveis e utilizadas na península as da CAF e da Talgo. Consistem em eixos variáveis que ao passar a baixa velocidade por um cambiador de bitola, encolhem ou estendem para se adaptar à bitola standard ou ibérica. Estes cambiadores permitem que os comboios não tenham de parar para trocar de bitola e são geralmente instalados junto a estações onde os comboios têm de parar ou afrouxar (abrandar) de qualquer das formas. 


Um intercambiador de bitola (a imagem tem uma hiperligação para um video que explica o funcionamento de um cambiador)

Tem sido com estas tecnologias que nuestros hermanos asseguram uma maior fluidez e interoperabilidade entre a sua rede de AV em bitola standard e a restante rede convencional. No entanto, note-se que só alguns comboios é que estão equipados com este sistema, o que significa que a interoperabilidade não é total. 

No setor das mercadorias, tem havido progressos notáveis com os sistemas OGI de eixos variáveis para vagões de mercadorias, estando esta tecnologia em vias de homologação final e comercialização. Nos próximos anos vamos então perceber se é comercialmente viável, e caso isso se verifique, podemos estar a falar de uma revolução no tráfego de mercadorias entre os dois lados dos Pirenéus. 


Um eixo OGI

Portugal tem de estar ligado à rede de Alta Velocidade Intereuropeia?

Tem-se tornado comum o jargão de que temos de estar ligados à rede de alta velocidade intereuropeia mas esta afirmação é bastante vaga e pouco pertinente.

Sejamos frontais, Portugal é um país muito periférico no seio da União Europeia, e o comboio de AV infelizmente esgota a sua competitividade para lá dos 600-800 km (e nos 800 já estou a ser muito generoso). A partir destas distâncias, por muito poluente que possa ser, o avião é rei e senhor por uma simples questão de tempo de viagem. Não tem nada a ver com vontades políticas ou ambientalismo, é uma questão de física, o avião é simplesmente muito mais rápido que o comboio. 

Quando aplicamos essas limitações a Portugal (600 km), começamos rapidamente a perceber que para lá de Madrid, o comboio de AV não consegue ser competitivo com o transporte aéreo. Por muito que sonhemos, não vamos apanhar o comboio de AV para ir a Paris ou Munique (não estou obviamente a falar de serviços noturno, isso é outra história).

Raios de 600 e 800 km a partir de Lisboa

Por isso, o estarmos inseridos ou não na rede intereuropeia, entre aspas, é igual ao litro, porque Portugal devido à sua posição geográfica nunca conseguirá ter serviços ferroviários a competir com o avião para destinos na Europa Central. Portugal deve focar-se em ter boas ligações rápidas às grandes cidades espanholas mais próximas de nós, como Madrid, Vigo ou Sevilha. Aí sim o comboio pode ser competitivo com o avião e até erradicar por completo o tráfego aéreo. E para chegar a essas cidades, não precisamos de andar a construir linhas em bitola europeia. 

As novas linhas que formos construindo não deviam ser já em bitola europeia? 

Respondo com uma pergunta: para quê?

Atualmente nenhuma das linhas espanholas que chegam à nossa fronteira está em bitola europeia. Para quê construir linhas em bitola europeia que na verdade nada mais serão do que ilhas ferroviárias apenas acessíveis a uma parte do material circulante? 

Enquanto Portugal não tiver um corredor ferroviário completo em bitola europeia a ligar o país à fronteira francesa, é inútil andarmos a falar de meter linhas em bitola europeia.

No entanto, o que o país pode e deve fazer, é precaver-se e instalar travessas polivalentes em todas as linhas, tanto atuais, como a construir. As travessas polivalentes são travessas de betão armado que têm 4 fixações em vez de 2, suportando tanto bitola standard como ibérica, permitindo que a bitola seja rapidamente mudada, quando tal for necessário, a custos reduzidos.

Exemplo de travessas polivalentes (note-se as duas fixações de cada lado)

Porque não podemos simplesmente instalar um 3º carril para criar linhas de bitola mista?

Foi o que os espanhóis fizeram pontualmente numa linha ou outra e a experiência não correu muito bem. Custos de manutenção elevados, complexidade adicional de construção e operação, até problemas tão básicos como o facto de as plataformas das estações terem de ser alteradas porque os comboio de bitola europeia andam deslocados do centro da via. 


Linha de bitola mista com 3º carril

Além disso, as linhas de bitola mista sofrem de condicionantes severas em termos de velocidade. Não me parecem, de todo, um modelo a replicar em Portugal mas sim a evitar. 

A bitola é o único entrave à total interoperabilidade ferroviária?

Nem de perto. A bitola é apenas uma das várias barreiras que ainda existem nalgumas fronteiras dos vários países europeus. Em cima disto temos as diferentes tensões de catenária nos vários países ou as diferenças nos sistemas de segurança e controlo de tráfego. Neste último tem sido feito um grande esforço pela UE para tentar uniformizar o sistema ferroviário europeu, mas é algo que ainda demorará bastantes anos a conseguir.


Na Europa, coexistem várias tensões de eletrificação diferentes

Portugal irá algum dia adotar a bitola europeia?

Depende, se as tecnologias de eixos variáveis nas mercadorias tiverem sucesso, acho muito difícil que tal algum dia aconteça, simplesmente por falta de necessidade. Se os comboios que precisamos que cheguem à Europa Central o podem fazer de forma fácil, porque gastar centenas de milhões a trocar a bitola de toda a nossa rede com a complexidade e disrupções que tal acarreta?

O único cenário que vejo em que Portugal adotar a bitola europeia, seria um cenário em que os Espanhóis decidem migrar toda a sua rede para essa bitola. Nessa situação, de facto, não faria sentido Portugal permanecer com uma bitola diferente, mas é importante notar que neste momento não há qualquer intenção das autoridades espanholas neste sentido, nem se espera haver. Em parte, porque estão cientes dos custos brutais que isso implicaria. 

Em suma, a bitola europeia em Portugal é, ou devia ser, um absoluto não assunto. Não é um tema prioritário com o qual um país com uma rede tão atrasada se deva preocupar. Portugal tem de se focar na consolidação e melhoria da sua rede atual: aumentar velocidades, resolver estrangulamentos de capacidade, modernizar e eletrificar linhas. Não perder tempo em devaneios sobre problemas que na verdade nem chegam a existir ou que não nos chegam sequer a afetar. 

A bitola é um tema para termos em conta a médio/longo prazo, nunca num curto prazo. É um assunto para guardar na gaveta, lembrando-nos apenas que ele lá está.

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